" Em 1968 , nos bons tempos de atendente de consertos da Telerj , quando era preciso paciência e equilíbrio para acalmar os assinantes nervosos "
Ela é do tipo que não leva desaforo para casa . E , se o motivo for justo ,também não fica de fora de uma boa briga . Para a cantora e compositora Leci Brandão , o exercício de cidadania vale 24 horas por dia . Para defender seu ponto de vista e sua música, tempos atrás ela pediu demissão de uma gravadora multinacional e pagou o preço , de ficar sem gravar. Seu Rei das Ervas , a enti-dade que sua mãe de santo incorpora , lhe disse para não se preocupar .E estava certo .No período que ficou sem gravadora ,Leci fez sua primeira viagem ao exterior e cantou , como nunca , lá fora e em shows por todo o Brasil . No fim do ano passado , recebeu a medalha Pedro Ernesto, da Câmara de vereadores do Rio de Janeiro , e o título de Cidadã Paulistana , entregue pela Câmara de Ve-readores de São Paulo .No mês passado ,caiu no samba de Mangueira , que a projetou para o mundo da música , e a Caprichoso de Pilares , que homenageou as personalidades negras .
RAÇA - Mas hoje , o que faz o sucesso é o samba . O que determinou essa mudança
LECI - Isso se chama trabalho de gravadora. Elas resolveram investir nos grupos , depois do es-touro do Raça Negra ,com 2 milhões de discos . E isso não adianta discutir . Foi o sucesso deles que abriu caminho para os que vieram depois . Isso porque cada gravadora resolveu ter o seu próprio Raça Negra .
RAÇA - Então , copiaram o que deu certo , em busca de sucesso fácil ?
LECI - Veja , por exemplo , a questão da temática . Só se fala de amorzinho ... Porque o Raça Negra estourou falando de amor . Quem não fala de amor está falando de sacanagem . Está todo mundo indo na aba da Bahia , depois que se viu que essa sacanagem que o baiano sempre teve ,a sexualidade , dá pé . Então eles falam de uma coisa ou de outra .
RAÇA Isso empobreceu o samba ?
LECI - O que eu coloco para estes meninos ,que assistiam nossos shows quando tinham 10,11 anos , é que acho fantástico o sucesso deles , porque ralaram muito . Mas eles poderiam aproveitar todo esse sucesso e prestar um grande serviço à sociedade brasileira , fazendo letras fantásticas como as dos garotos do funk e do rap .
RAÇA - Mas isso não seria , de certa forma , seguir a " escola Leci " ?
LECI - Não sei se é seguir a minha escola . Mas acho que eles podem prestar um serviço social . Todos os meus discos têm músicas de amor , mas nunca deixei de me preocupar com a mulher , com o home , o cara do morro , o trabalhador , o suburbano ...
RAÇA - No início de carreira você fez músicas de temáticas gay .Foi discriminada por isso ?
LECI - Quando fiz " Ombro Amigo " , mandaram uma carta para a Mangueira . O presidente da ala dos compositores respondeu que não tinha nada contra mim . Agora , não dá pra vir com brinca-deirinha comigo . E também qual é a opção sexual de cada um . Quero ver a casa cheia .
RAÇA - Sua figura de artista ficou tão associada às brigas sociais à defesa das minorias , que passaram a chamá-la de Leci das Comunidades , não é ?
LECI - Sou uma pessoa que veio da comunidade e acho que é minha obrigação levantar essa bola . Na Rede Globo , onde fui comentarista do Carnaval durante nove anos , ficava falando das baianas, do cara da bateria , do compositor . Sempre achei que a festa do Carnaval é deles , os outros são oportunistas . Porque um dia do ano , eles passam dois segundos na TV . Os artistas aparecem 365 dias no vídeo . Aqueles dois dias de desfile são da galera do samba .O apelido não me aborrece . Adoro ! Sou mesmo da comunidade.
RAÇA - E por que você parou de comentar Carnaval na Globo ?
LECI - O pessoal de alta sociedade ficou incomodado porque eu não falava o nome deles .A Globo teve um comportamento muito legal , porque jamais recebi bilhetinho para falar o nome de A,B, C . Mas também pararam o comentário . Hoje, é só , narração . E o povo do samba sente saudade , me cobra , porque a minha saída é a ausência do nome deles no desfile da televisão .
RAÇA - Você já foi jurada de desfile ?
LECI - Sempre me recusei . Não vou julgar amigo meu . Tenho trânsito livre em todas as escolas . Então , é muito complicado julgar alguém que vi crescer , que convive comigo . E eu sei o sacri-fício que é fazer Carnaval . Criticar é fácil . Mas ninguém sabe o que é empurrar carro alegórico , socorrer a baiana que passou mal no desfile , não deixar faltar fantasia pra ninguém . Nunca de-sejei ser de diretoria de escola de samba . É muita responsabilidade . E também iria brigar muito .
RAÇA - Você foi a primeira , mas não surgiram outras .
LECI - Outras escolas também têm mulheres , como a Teresa Tinoco , que é do Salgueiro . A Mart' nália concorreu na Vila Isabel , em 1996 . Na Mangueira , a Tia Zélia da velha - guarda , no ano passado . Acho que elas não aparecem muito pelo próprio machismo . E ficam muito quietas Porque eu brigo um bocado , sempre me coloco. O exercício da cidadania , eu uso 24 horas por dia , em tudo na vida .
RAÇA - Essa atitude crítica já prejudicou sua carreira ?
LECI - Na primeira fase da minha carreira , eu era tida como xiita . Mas , depois , cheguei à con-clusão de que neste país você tem que dizer as coisas de forma mais amena , sorrindo , ainda que o discurso seja o mesmo .Senão você espanta o povo , fica estigmatizado .Por outro lado ,se eu fosse acomodada , não gritasse , se fosse lourinha de olhos verdes , fizesse parte das patotas e se fosse fácil transar comigo , será que eu não estaria bem melhor ? Com certeza , sim !
RAÇA - Como você o Carnaval de hoje ?
LECI - Pela ótica atual , não se pode botar um desfile pobre na Sapucaí .A festa do povo acabou . Hoje , é o Carnaval do luxo , que exige recurso das escolas .O povo foi praticamente expulso das arquibancadas e também está perdendo espaço nos desfiles , pois fica restrito as alas das baianas , bateria e compositores .O desfile está embranquecendo e a televisão o torna mais branco ainda . Até os câmeras só focalizam as mulheres brancas . As negras , por mais que sambem e sejam bonita , não aparecem além de um segundo no vídeo . Não tem mais aquela torcida , e todo mundo quer vir do lado direito , porque se descobriu que aparece mais na televisão .
RAÇA - As escolas estão repetindo o modelo da pirâmide social , em que a grande massa é negra e, à medida que se chega à diretoria e à presidência , a cor vai clareando ?
LECI - Não é por aí , não. É a absoluta necessidade apoio financeiro . As coisas mudaram . Hoje, tem gente que paga para ser enredo . Depois que a Imperatriz ganhou com o Ceará , abriu o olho de todo o mundo . Por que acha que o Salgueiro cantou uma Amazônia ? O mercantilismo no Carnaval está muito sério . É Estado que quer se promover na Sapucaí , é gente que quer se projetar. Então , a escola tem que ter dinheiro para fazer um Carnaval legal . E qual é o empresário negro que vai ban-car uma escola de samba ? Eu não conheço . Hoje , as escolas dependem de homens brancos com dinheiro para botar no Carnaval bonito na rua . É a fase comercial do samba .
RAÇA - Então , os empresários estão substituindo os banqueiros do bicho ?
LECI - Falam mal dos banqueiros , mas eles estiveram envolvidos com as escolas desde o iní-cio . O capitão Guimarães sempre ajudou a Vila Isabel ; o Monassa , a Viradouro ; o Miro , o Salgueiro ; e o Anísio é Beija -Flor , roxo . Mas esses caras sempre respeitaram a comunidade . Ele buscavam a escola, mas não interferiam no métier .Queriam ver as baianas bem vestidas , a bateria , ... Depois que se afastaram , a coisa ficou complicada .
A importância das suas frases que demonstram quem é a Leci .
" A mulher mais importante da minha vida é Dona Lecy de Assumpção Brandão . Foi ela quem me ensinou a filosofia que tenho três palavras : por favor , obrigada , dá e me
" Talvez não gostem de mim porque minha mente está aguçada contra todo tipo de preconceito "
" Tem negro com preconceito de votar em negro "
" Tinha que ter uma lei que incluísse o negro em todos os comerciais de televisão . Também quero ver uma novela com todos os protagonistas negros "
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- Se não fosse Mangueira de coração e alma seria ... : Vila Isabel Prato preferido : peixe , frango e muita salada . Comendo assim me sinto melhor . Bebida que mais gosta : uísque e vinho branco . Livro de cabeceira : O Profeta de Khalil Gibran . Lugar que busca quando quer paz : praia da Graça Torta , em Maceió . Onde jamais iria fazer show : na Bósnia , ou em qualquer desses países em conflito . Compositor que mais gosta : Martinho da Vila . Cantora que curte : Alcione , Mart'nália , a " sobrinha " que me emocionou num show recente . Num disco dela , vi meu nome pela primeira vez na contracapa . Cantor preferido : Milton Nascimento . Ídolo Negro : tenho um guru , que é o fotógrafo Januário Garcia . A gente conversa muito ... Branco que admira : a Jô Rodrigues , produtora cultural , que viabilizou meus cachês mais altos e me apresentou ao movimento negro de Alagoas . Ator preferido : Mauríco Gonçalves , meu filho em Xica da Silva . Atriz preferida : Ruth de Souza . Amiga de Fé , irmã , camarada : a assessora da senadora Benedita da Silva , Nelida Fabiano. Rio de Janeiro ou São Paulo : os dois . Nasci no Rio , mas foi São Paulo que me " detonou " para a mídia .
Fonte - Revista RAÇA BRASIL - ( trechos da entrevista ) - págs 23 a 26 Data - Março de 98 - POR VILMA HOMERO