quarta-feira, 4 de dezembro de 2024

Vidas acorrentadas pela desilusão e pela História

 



Descendente de escravos ,escritora mineira tece romance vigoroso sobre negros no Brasil

Ensinam os livros de  História que a  princesa Isabel libertou os  escravos ao  assinar a  Lei Áurea em 1888 . Com uma  simples penada , acabaram-se ali  os mais  de três séculos  de  sofrimento  e  dor em que a Humanidade de  pele  branca portuguesa aprisionou seus irmãos de  pele escura  africana no  gi-gantesco cativeiro da Terra Brasilis . Ensinam os jornais  que a História não é bem assim. Diariamente somos lembrados de que os descendentes dos escravos ainda vivem acorrentados à miséria , ao desem-prego, à  violência ,  dos  quais sempre as maiores  vítimas . Pois é dessa realidade a que  nos remete a  imprensa - mais do que  do  suposto  ato de  libertação de  118 anos atrás -  que  surge a  força do  ro-mance  " Ponciá  Vicêncio " , da  escritora mineira  Conceição Evaristo .

 Neta  de escravos , nascida  do  ventre  já livre da escravidão , Ponciá  é  cria  do  povoado  de  Vila  Vicêncio , situado  em  algum lugar  do  interior do  Brasil . Seu sobrenome , o mesmo  que  batiza o  miserável  vilarejo natal , é , porém , a marca  visível dos  séculos pesando sobre  os  descendentes de todos que  um dia pertenceram , por  compra ou nascimento , ao velho coronel  Vicêncio . Lavradora como os  avós , artesã de barro como a mãe ,Ponciá se cansa de  uma  vida sem perspectivas e um dia , sem maior  aviso , pega  o trem  para a cidade grande . Lá trabalha como empregada  doméstica ,mora no  morro, junta-se a um homem violento, perde os sete filhos ainda bebês por  " problemas no sangue " ... e sonha . Sonha com uma vida melhor do que a de seus antepassados livre da herança perversa  de  sua  condição porque  " enquanto  os  brancos  eram  donos  da cana , café , do gado e das terras , os negros eram  donos  da miséria , da fome , do sofrimento e da revolta suicida " .

Paralelamente corre , a partir da  metade do livro , a  história do irmão de  Ponciá , Luandi , que segue  seus passos e também via parar na  cidade grande ,o tempo todo à  procura da irmã  desaparecida . Em curtas 132  páginas , o  livro  é  a  trajetória  de desilusão  dos dois , que passam  por  processos seme-lhantes de desencantamento com as possibilidades oferecidas pela vida a alguém que já nasce atrelado ao  pesado passado da escravidão. Enquanto Luandi vai despertando de seu  sonho de ser soldado para poder " mandar , prender , bater como os brancos "  . Ponciá vai aos poucos deixando-se tragar nas tre-vas da  insanidade , talvez seu  refúgio mais seguro .



É uma  história universal e  Ponciá e  Luandi poderiam ser  quaisquer um dos  muitos mlhões de brasi-leiros descendentes  da  senzala que  a cada  dia são notificados pela  realidade  de que a  princesa deu-lhes  apenas uma  liberdade pela metade , cuja realização plena caberá à  História ainda por fazer . Ela própria  descendente de escravos . Conceição  Evaristo fez de  " Ponciá Vicêncio " , numa prosa  vigo-rosa de frases curtas e imagens literárias inspiradas , um libelo pessoal contra o  destino da maior parte de  seus  irmãos de pele . Destino  o qual ela ganhou  alforria  em  forma  de  diploma  de  letras  pela UFRJ  e de  doutorado em andamento pela  UFF . Não  apenas graduada  em letras , mas  dotada delas . Conceição  as  usa  eficazmente  - embora  sem  engajamento explícito  -  em  defesa de uma alforria  que  não conseguiram  romper os  grilhões .

Fonte  - Jornal  O  GLOBO    - PROSA & VERSO  - pág   4                                                                      Data  -  Sábado , 21  de  Janeiro  de  2006  -  Cláudia  Nina 

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