Descendente de escravos ,escritora mineira tece romance vigoroso sobre negros no Brasil
Ensinam os livros de História que a princesa Isabel libertou os escravos ao assinar a Lei Áurea em 1888 . Com uma simples penada , acabaram-se ali os mais de três séculos de sofrimento e dor em que a Humanidade de pele branca portuguesa aprisionou seus irmãos de pele escura africana no gi-gantesco cativeiro da Terra Brasilis . Ensinam os jornais que a História não é bem assim. Diariamente somos lembrados de que os descendentes dos escravos ainda vivem acorrentados à miséria , ao desem-prego, à violência , dos quais sempre as maiores vítimas . Pois é dessa realidade a que nos remete a imprensa - mais do que do suposto ato de libertação de 118 anos atrás - que surge a força do ro-mance " Ponciá Vicêncio " , da escritora mineira Conceição Evaristo .
Neta de escravos , nascida do ventre já livre da escravidão , Ponciá é cria do povoado de Vila Vicêncio , situado em algum lugar do interior do Brasil . Seu sobrenome , o mesmo que batiza o miserável vilarejo natal , é , porém , a marca visível dos séculos pesando sobre os descendentes de todos que um dia pertenceram , por compra ou nascimento , ao velho coronel Vicêncio . Lavradora como os avós , artesã de barro como a mãe ,Ponciá se cansa de uma vida sem perspectivas e um dia , sem maior aviso , pega o trem para a cidade grande . Lá trabalha como empregada doméstica ,mora no morro, junta-se a um homem violento, perde os sete filhos ainda bebês por " problemas no sangue " ... e sonha . Sonha com uma vida melhor do que a de seus antepassados livre da herança perversa de sua condição porque " enquanto os brancos eram donos da cana , café , do gado e das terras , os negros eram donos da miséria , da fome , do sofrimento e da revolta suicida " .
Paralelamente corre , a partir da metade do livro , a história do irmão de Ponciá , Luandi , que segue seus passos e também via parar na cidade grande ,o tempo todo à procura da irmã desaparecida . Em curtas 132 páginas , o livro é a trajetória de desilusão dos dois , que passam por processos seme-lhantes de desencantamento com as possibilidades oferecidas pela vida a alguém que já nasce atrelado ao pesado passado da escravidão. Enquanto Luandi vai despertando de seu sonho de ser soldado para poder " mandar , prender , bater como os brancos " . Ponciá vai aos poucos deixando-se tragar nas tre-vas da insanidade , talvez seu refúgio mais seguro .
É uma história universal e Ponciá e Luandi poderiam ser quaisquer um dos muitos mlhões de brasi-leiros descendentes da senzala que a cada dia são notificados pela realidade de que a princesa deu-lhes apenas uma liberdade pela metade , cuja realização plena caberá à História ainda por fazer . Ela própria descendente de escravos . Conceição Evaristo fez de " Ponciá Vicêncio " , numa prosa vigo-rosa de frases curtas e imagens literárias inspiradas , um libelo pessoal contra o destino da maior parte de seus irmãos de pele . Destino o qual ela ganhou alforria em forma de diploma de letras pela UFRJ e de doutorado em andamento pela UFF . Não apenas graduada em letras , mas dotada delas . Conceição as usa eficazmente - embora sem engajamento explícito - em defesa de uma alforria que não conseguiram romper os grilhões .
Fonte - Jornal O GLOBO - PROSA & VERSO - pág 4 Data - Sábado , 21 de Janeiro de 2006 - Cláudia Nina
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