quinta-feira, 13 de novembro de 2014

O escravo e o doutor




Elciene Azevedo realizou um movimento algo distinto. Centrou–se num  mito, numa figura  quase épica, legendária na crônica e mesmo na historiografia dedicada ao período: um negro que, antes da Abolição, havia se transformado em personalidade, em “notável cidadão“ , em unanimidade por toda admirada. Em  Orfeu de Carapinha, a historiadora procura explorar as tensões  entre o homem e o mito para entender a dinâmica da época. Elciene não se satisfaz com a exaltação costumeira da figura de Luiz Gama, o negro abolicionista  e republicano que enfrentou  “seu destino de escravo revertendo–o em luta contra a escravidão“.  Abre-se para a busca das "dimensões ambíguas e por vezes contraditórias de sua atuação“, procurando explorar ao máximo o fato mesmo de um negro ter penetrado com êxito  ( e de modo contestador  )  aquele mundo branco e senhorial.
Luiz Gama se presta como poucos a essa operação.  Filho de um fidalgo português com uma quitandeira africana, nasceu como homem livre na cidade de Salvador, em 1830. Aos dez anos, foi vendido como escravo pelo próprio pai e enviado a São Paulo, onde conseguiu simpatia e proteção de alguns poderosos. Alfabetizou–se, tornou–se  funcionário público , vinculou–se  ao republicanismo paulista, arriscou–se  como poeta satírico e, acima de tudo, adquiriu na prática todo o conhecimento jurídico necessário para advogar  “gratuitamente em favor de todas as causas de liberdade“, particularmente dos escravos.
Deixou de ser “um pobre negro esfarrapado e descalço“ para se tornar um “doutor“, infiltrando–se pelas brechas do sistema. Mostrando surpreendente habilidade para estabelecer relações  com os mais diversos setores da sociedade paulistana, irá se revelar um causídico incansável e vitorioso.
A forma  “passiva“, isto é,  sem rupturas fortes e sem maior mobilização popular, adquirida  pela crise da monarquia,  se viabilizou e deu sentido à trajetória de Luiz Gama, complicou os sonhos  “ americanistas  “ de Rebouças e as ideias reformadoras de Nabuco. Ambos tiveram de aceitar as convenções imperiais, fato que significará uma derrota para Rebouças, que não se dava com a política, mas será visto por Nabuco como a possibilidade mesma de uma vitória, ensejando sua conhecida opção pelo abolicionismo pragmático.
De um modo ou de outro, esses fascinantes intelectuais do século 19 anteciparam muitos dilemas nacionais e expuseram a céu aberto vários dos eixos com os quais construir, nas específicas condições dos trópicos  de passado colonial, um país moderno, forte na economia, socialmente  justo e democrático. São,   por isso  atualíssimos.

Fonte  - Jornal  de Resenhas  Especial - 14/08/1999 - pág 7   

Marco Aurélio Nogueira  é professor de Política da Universidade  Estadual Paulista  (UNESP) 

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Deixe seu comentário sobre a postagem.