terça-feira, 27 de março de 2018

O Anti-Cabeça



Quando um intelectual rima com marginal

Uma tendência ganha fôlego em nossos dias, o antiintelectualismo. Seu porta-voz, o Anti-Cabeça, está em tudo que é lugar pronto para lutar por sua ideologia.

O Anti-Cabeça é recrutado por uma força invisível (um deus? um fenômeno natural?), que diz “Onde quer que estejas, filho, abomina todo refinamento mental, toda sutileza oratória. Destrói aqueles que elaboram o pensamento completo e abre as portas para a felicidade simplificadora”.

O Anti-Cabeça pode ser ignorante ou culto. Mas nunca será inteligente.

O inteligente inculto, por sua vez, livra-se de ser um Anti-Cabeça se estiver consciente de seus limites circunstanciais, e der-se a liberdade de decidir, sem traumas, desenvolver ou não o intelecto. Mas, se for magoado será um Anti-Cabeça furioso.

Culto ou ignorante (mas sempre ininteligente), o Anti-Cabeça odeia o raciocínio sofisticado e acredita que, para existir e imperar, precisa exterminá-lo ou isolá-lo. Não pode haver diálogo entre as duas esferas. O mundo é pequeno demais para caber Cabeça.

O intelectual na visão do Anti-Cabeça, nada tem a contribuir para a construção de uma sociedade melhor. Ele é sempre o Cabeça, pernóstico, mentiroso, delirante, confuso, um chatonildo que opõe-se à simplicidade deste mundo.

O Anti-Cabeça vomita diante uma arte que não seja figurativa ou decorativa. Cospe, mesmo sem ouvir numa música cuja harmonia (palavra proscrita) seja um tantinho mais intrincada.

Acredita que a vanguarda não existe, que é sempre um embuste, e ignora interdependência / intercâmbio / processo que envolvem um clássico e novo.

O Anti-Cabeça pronuncia a palavra “intelectual“ como se fosse um palavrão. Ou então como se tal ser (“O intelectual“) não existisse na realidade, fosse invariavelmente um picareta, sujeito deletério, um sofisma ambulante, uma praga subversiva.

O Anti-Cabeça dorme na platitude e acorda no banal. Acredita que o medíocre será vencedor. À noite, sonha com a uniformização de tudo num grande show que não pode parar para pensar, que transforme as vidas num zumbido permanente e alegre.

Nesse show não há lugar para a expressão da tristeza da melancolia, da angústia como formas válidas: estes são sentimentos para se extirpar do coração antes de chegar à garganta e à voz, que devemos guardar nos nosso peitos, não encher o saco dos bons e simples com roupa suja existencial.

A existência, por sinal, não é uma questão a ser pensada ou exposta, crê o Anti-Cabeça. A existência apenas “é“. E ponto - porque se forem reticências a coisa já fica muito complexa. Toda a filosofia está enterrada nesta afirmativa, podemos bailar e rir. É tão fácil ser feliz! Só o Cabeça, com sua carranca, é que não vê.

O objetivo final do Anti-Cabeça é exterminar o cabeça, que tem um poder de comunicação imediata menor e pode encontrar dificuldades em defender sua dignidade e sua honra.

O Anti-Cabeça segrega, procura criar uma nova classe de degenerados, de inúteis, de incompreensíveis masturbadores mentais que nada têm a ver com o senso comum e, portanto, não devem ser levados a sério. O mundo será melhor, mais direto, mais claro, mais divertido e colorido sem eles para perturbar. Que fiquem encastelados em seus átrios abafados e cheios de teia de aranha.

O cronista, que não é um Anti–Cabeça, prescinde de declarar-se, entretanto, um intelectual. Mas saúda os Cabeças e os simples com toda a humildade.



Fonte - Jornal O GLOBO pág 10 Segundo Caderno



Sábado , 14/02/2004 ARNALDO BLOCH

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