terça-feira, 8 de maio de 2018

A ciência artística de Leonardo da Vinci



Com 'Leonardo – O Primeiro Cientista‘, o britânico Michael White procura redimensionar o talento científico do autor de ‘Mona Lisa‘, no momento em que se comemoram 550 anos de seu nascimento.

O enigmático sorriso da Mona Lisa ainda é o principal atalho para se chegar ao nome de Leonardo da Vinci, pintor e escultor que personificou como poucos o termo “homem renascentista “ ao reunir habilidades raras em diversas artes e ofícios. “Mas o que o tornou artista único foi ter trabalhado em áreas distintas do conhecimento, unificando-as com um talento que podia se expressar de modo igual como artista, experimentador, engenheiro e projetista“, afirma o britânico Michael White, autor de Leonardo – O primeiro Cientista (Record, 364 páginas, R$ 38), livro lançado justamente quando se completam 550 anos do nascimento e Leonardo da Vinci ( 1452-1519 ) .

Com a obra, White busca recuperar a importância dos excepcionais talentos científicos do italiano, que ficaram em segundo plano por conta de sua notabilidade artística. O principal motivo do esquecimento foi exatamente o desaparecimento de boa parte de seus manuscritos – segundo ele, estima-se que, das 13 mil páginas originais deixadas por Leonardo conhece-se hoje o paradeiro de pouco mais que a metade, cerca de 7 mil.

Leonardo fez importantes descobertas em seus estudos de ótica, mecânica, astronomia, anatomia e geologia: criou um tipo de plástico, desenvolveu um predecessor sofisticado para a máquina fotográfica ( a câmera escura ), escreveu sobre lentes de contato e a força motriz do vapor, explicou os motivos de o céu ser azul e desenvolveu técnicas visuais para a representação do corpo que só seriam realmente visíveis no futuro distante, a partir da tomografia computadorizada.

Enquanto as pessoas em sua época confinavam-se em determinada área, Leonardo exibia um grande dom para diversas disciplinas, acreditando que o mais sábio era acumular conhecimento“, explica White em entrevista, por e-mail, ao Estado, de Perth, na Austrália, onde mora. Tal interesse moldava sua rotina na qual, ao buscar as grandes questões universais, unia arte e ciência.

O escritor destaca que, com o conhecimento de anatomia, Leonardo soube representar melhor as figuras humanas e animais. Ele utilizou também sua compreensão de ótica para melhorar o emprego da sombra, contraste e perspectiva, além de se basear em seus estudos como geógrafo e geólogo para conferir exatidão e realismo às suas paisagens.

O interesse por Leonardo da Vinci surgiu quando White fazia pesquisas sobre a vida do físico Isaac Newton, que resultaram no livro O Último Feiticeiro, também editado pela Record. “Durante o trabalho, notei que havia um farto material sobre os trabalhos científicos de Leonardo, que ficaram perdidos durante 200 anos e só foram redescobertos na época de Newton, no século 17“.

White impressionou-se com o espírito irriquieto do italiano, um homem ao mesmo tempo inquiridor e desconfiado. “Como pintar era uma atividade que realizava com relativa facilidade, ele investigou outras áreas do intelecto, especialmente as científicas, e não media esforços para comprovar sua tese“. Uma de suas mais curiosas persistências eram as sessões de dissecação de cadáveres, com a qual Leonardo buscava desvendar a precisão anatômica. Era uma prática suja, noturna, socialmente marginal – mesmo assim, ele confessou em seus escritos ter dissecado mais de dez corpos.

Em seu livro, White declara que Leonardo era fascinado pelo funcionamento do olho e de sua interação com o cérebro para produzir a visão. “Ele foi, provavelmente, o primeiro anatomista da história a observar como os nervos óticos saem da parte posterior do olho e fazem conexão com o cérebro“, escreveu. Leonardo também realizou muitas dissecações de crânios de animais, interessando-se especialmente pelos cérebros de bois, buscando pistas sobre o funcionamento do sistema nervoso.

Anatomia – Não satisfeito, ele gastou ainda um tempo considerável estudando o sistema reprodutivo tanto do homem como da mulher, desenhando diagramas precisos que mostram a função dos ovários, além de produzir extensas descrições de como sêmen é produzido. “Além de suas belas pinturas, o principal legado de Leonardo é a coleção de desenhos anatômicas, dos quais nos restaram hoje cerca de 1.500“, comenta White, lembrando ainda das esplêndidas, representações do coração, fígado, rim, baço e estômago, além da descrição precisa dos sistemas endócrino e circulatório.

A paixão pelo funcionamento do corpo humano contrastava com a forma pouco lisonjeira com que Leonardo tratava pessoas – se considerava o organismo do homem como a máxima criação divina, também exibia uma mínima compaixão pela sociedade, que considerava formada por “enchedores de latrinas“. White levanta uma série de hipóteses sobre esse rancor, a partir da origem de Leonardo.

Apesar de amado pelo avô Antônio, que se preocupou em anotar em um caderno os dados exatos sobre seu nascimento ( às 22h30 de um sábado, 15 de abril de 1452 ), ele era filho ilegítimo, fruto de um relacionamento de seu pai com uma camponesa. Na época, a ilegitimidade era condenada com o ostracismo, o que teve um forte impacto sobre seus sentimentos. White destaca ainda, a partir das anotações existentes, que Leonardo era vegetariano, pacifista e homossexual.

A infância passada no campo, porém, a despeito do isolamento, trouxe influências positivas, como o contato com a natureza, com a qual desenvolveu sua percepção para o vento, o solo e a luz solar. Leonardo – que nasceu em Anchiano, aldeia vizinha da cidade de Vinci - era também obcecado pela água e seus efeitos, a ponto de, já adulto, escrever o Livro das Chuvas, em que faz um estudo minucioso da erosão e da forma como as nuvens são formadas. O interesse pela água ajudou-o também em pesquisas geológicas, em que concluiu acertadamente que muitas criaturas fossilizadas tinham sido expostas pelo rebaixamento dos oceanos.

Da atenta observação dos pássaros, Leonardo desenvolveu teorias sobre o voo humano, projetando inclusive uma figura que foi chamada de “parafuso aéreo“ ou “helicóptero de Leonardo“: uma estrutura com uma espiral de tecido acima dela, que gira para criar o empuxo vertical. “Os princípios aerodinâmicos são bem fundados“, declara White, lembrando ainda que o italiano desenhou projetos de paraquedas e sistemas de segurança para o uso em sua máquina voadora.

O escritor conclui que as investigações de Leonardo claramente reforçaram suas habilidades como artista. A partir das pesquisas anatômicas, por exemplo, ele chegou a formular regras sobre a melhor maneira de desenhar e pintar seres humanos em diferentes posturas, acreditando que o artista necessita compreender os músculos do rosto e a forma como estes se relacionam com as inúmeras expressões produzidas pelos homens.

White é firme em apresentar Leonardo da Vinci como um cientista, apesar das contestações vindas do meio intelectual - argumenta-se, por exemplo, que o italiano detinha poucos conhecimentos matemáticos, apesar de utilizar conceitos como ângulos, raios e proporção. O escritor rebate dizendo que Leonardo compensava com seu gênio como artista.

"As acusações vêm desde os tempos vitorianos, quando Leonardo não era entendido nem como artista", diz. "Como não era um cientista 'convencional', ele foi ridicularizado e essa atitude infelizmente persiste em algumas pessoas. White prega uma interpretação mais ampla do significado da palavra "ciência" para justificar sua classificação. "Para mim, ciência é exploração, questionamento, aplicação da imaginação, análise. E assim, sem dúvida, Leonardo foi um praticamente da ciência , porque satisfaz a todos esses critérios".

TRECHO

Durante 35 anos de investigação científica, Leonardo aprendeu mais sobre ciência e seu emprego para ele como artista que qualquer pessoa da sua época. Grande parte disso encontrou aplicação em pinturas e desenhos de maneiras sutis. Ele certamente não fazia alarde de seu conhecimento e nunca atraiu o foco de sua arte para longe de sua representação. Nunca perdeu de vista o fato de que a ciência estava lá para ajudá-lo como artista, e não para permitir que ela sobrepujasse o espírito ou a substância de seu trabalho. "Amor a qualquer coisa é o produto do conhecimento" observou ele, "o amor sendo mais fervente em proporção enquanto o conhecimento é mais certo, e isto sem dúvida nasce de um conhecimento integral de todas as partes que compõem o todo".

As pesquisas de Leonardo, o cientista, trabalhando dentro dos campos da ótica, anatomia, geologia e hidrologia, ajudaram Leonardo, o artista; mas outros que o sucederam também ganharam insigths com o seu trabalho. O Tratado della Pintura é há muito um texto padrão para todos os jovens artistas. Em seus últimos quadros, Rembrandt demonstrou como ele havia ganhado muito das ideias de Leonardo sobre a luz e a sombra, e o impressionismo foi estruturado alterando-se a importância relativa sobre a tela das partes que recebem mais luz, as que recebem menos luz e os reflexos difusos.

Fonte - Jornal O ESTADO DE SÃO PAULO - CULTURA pág D 14
Domingo , 14 de abril de 2002 - (caderno 2 ) Estudo UBIRATAN BRASIL

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Deixe seu comentário sobre a postagem.