terça-feira, 3 de março de 2020

A origem dos males urbanos em São Paulo

Av. São João - Largo do Paissandú 


‘Prelúdio  da  Metrópole‘ analisa a evolução da cidade do fim do século 19 até os anos 30  e  mostra os efeitos nefastos da especulação imobiliária e de um poder público  inoperante  

Em Preludio da Metrópole – Arquitetura  e Urbanismo em São Paulo na Passagem do Século XIX ao XX ,lançado pela  Ateliê  Editorial , Hugo  Segawa vai às origens do problema urbano em São  Paulo e deixa evidente – a partir de uma pesquisa detalhada e criteriosa – que não é técnica , mas política e econômica a origem dos males urbanos desta megalópole .

Com um olhar aguçado sobre os problemas atuais dessa cidade caótica , Segawa conseguiu traçar um fascinante e perturbador panorama do período em que São  Paulo deixava para trás o ranço provinciano e buscava construir as bases para sua expansão  futura . Um dos aspectos mais interessantes evidenciados por esse trabalho é que muitos dos diagnósticos feitos feitos hoje sobre a doença urbana paulistana já estavam evidentes no início deste século. Mais ainda, não foram feitas apenas avaliações mas também projetos que, se tivessem sido postos em prática, teriam dado uma outra aparência à cidade .

O fato de ter sido originalmente um trabalho de conclusão de curso escrito em 1979 só faz aumentar a importância de Prelúdio  da  metrópole , já que , ao longo desses quase 20 anos , a pesquisa  ( que só estava representada por um exemplar na  biblioteca da Faculdade  de  Arquitetura   e  Urbanismo  da USP ) foi construindo seu caminho, sendo cada vez mais citada por renomados pesquisadores da área .  Esse sucesso explica a decisão de Segawa de relançá-la agora ,com apenas alguns ajustes. Esse “relançamento” ,no entanto, poderia ter dado lugar a um aprofundamento  dessa pesquisa , levando o autor a mergulhar mais fundo nas causas desse crescimento perverso e desorganizado.

O período abrangido pela pesquisa final do século 19 aos anos 30 . O crescimento da cidade ,estimulado pela riqueza do café leva os paulistanos a tentarem ampliar  os limites da cidade para além do acanhado triângulo , determinado pelos  Conventos  de  
São  Francisco , do Carmo  e  do  Mosteiro de  São  Bento . " Num primeiro momento a fixação da elite paulistana foi vencer as depressões: transpor ou urbanizar os vales " escreve ele, acrescentando que em 1877  Jules  Martin propõe  o  Viaduto  do  Chá  
( inaugurado em 1892 ) e transforma em realidade o que parecia impensável , cobrando pedágio para atravessar uma ponte que levava a nada . 

Trata-se de um período de grande atividade .O desejo por reformas não referia apenas ao centro ,mas pululavam também projetos de construção de empreendimentos imobiliários nas periferias ,foram idealizados vários projetos comerciais ,ansiosos por explorar a importância crescente dos padrões de consumo europeus.  Chegou-se inclusive a idealizar uma  Exposição  Universal  , prevista para 1892 .  Também chegavam à cidade os serviços de infraestrutura oferecidos por empresas estrangeiras ,o que lembra - e muito - a atual rodada de inversões  multinacionais  em serviços públicos  , como  a  telefonia .

" No entanto , a impressão final , é que , comandados sob o signo de  inversões  imediatas , todos esses empreendimentos careciam de um sentido social claro " , afirma Segawa . Essa constatação , que se refere ainda ao final dos oitocentos pode tranquilamente ser aplicada à grande maioria das iniciativas tomadas em relação à urbe em questão até nossos dias . 

Arborizar  é  sanear -  Nosso primeiro urbanista , Adolfo  Augusto Pinto , já afirmava que o principal problema a ser resolvido era a questão do saneamento público e tinha como máxima  o slogan  " arborizar é  sanear " . É de sua autoria  o  primeiro plano de melhorias para a cidade . O projeto , no entanto , ficou na vontade , com exceção do  Viaduto  Boa  Vista .

Segundo Segawa , a primeira década do século foi marcada pelo surgimento de uma consciência mais madura em relação à cidade , " talvez pela formação de um quadro de engenheiros da Escola Politécnica , talvez pela presença de empresas estrangeiras voltadas à exploração de serviços de transporte e energia " . 

Havia , no entanto ,uma série de empecilhos  econômicos  e problemas ligados à especulação imobiliária . " Mesmo que houvesse um desejo potencial por parte do poder público de assumir obras de  embelezamento  urbano , somente a  iniciativa  privada  arriscava recursos financeiros para tais interesses " , oferecendo propostas articuladas segundo os seus interesses" , resume  Segawa , concluindo que " essa situação tornar-se-ia  o paradigma das limitações do poder público e da atuação do empreendimento privados na evolução da cidade de  São  Paulo  até hoje " .

Se ela pode agradar todos queles se interessam pelos aspectos sociais relacionados com as  políticas  urbanas desenvolvidas no País ( fato reforçado pela rica iconografia de época , como as  saborosas  charges  de  Voltolino ) , a obra de Segawa tem atrativos a mais para arquitetos e historiadores . As descrições detalhadas sobre três projetos de urbanização distintos apresentados entre novembro de 1910 e janeiro de 1911.

Enquanto um grupo de capitalistas defendia o projeto  Alexandre de Albuquerque , inspirado no modelo imposto por  Haussmann  em  Paris , a prefeitura apresentava o  projeto  Freire-Guilherm e o governo do Estado , por sua vez , defendia  o Samuel das Neves . Para solucionar a polêmica recorreu-se ao ilustre arquiteto  francês  Joseph  Antoine  Bouvard , que estava de passagem por aqui .

Em seu parecer , ele defende uma série de medidas como  a  preservação  da  história da  cidade , uma estratégia que permita tirar partido da  topografia  acidentada  da  região e o preenchimento entre os clarões que separavam o vários  núcleos  urbanos .  " Em todas essas disposições convém não esquecer a conservação e a criação  de espaços  livres , de  centros  de  vegetação " , receita ele , lembrando que " mais  a população aumentará , maior será a  densidade  de  aglomeração , mais crescerá o número de construções , mais alto subirão os edifícios , maior se imporá a urgência de  espaços  livres " , escreve.

Autofagia  - Esse plano norteou de certa forma as intervenções urbanas realizadas  na cidade durante a década de 20 , sendo responsável entre outras coisas pela criação dos  Parques  do  Anhangabaú  e D. Pedro II . mesmo sendo implementado apenas socialmente , foi o trabalho dele que permitiu a  São  Paulo " atingir um equilíbrio saudosamente relembrado " pelas gerações mais velhas . Mas, como bem lembra Segawa , essas intervenções pontuais se tronaram ainda menos eficazes a partir da década de 40 , com o acentuamento do processo de  " autofagia  urbana ' .

No último capítulo do livro , intitulado A Periferia  Saudável e  Periferia  RemediadaSegawa foca seu olhar , deixando de lado o mapa da cidade e investigando a  política habitacional  da  época , as diferenças crescentes entre os loteamentos para  rico  e pobres . Um de seus materiais  de  pesquisa  reproduzidos no livro são os anúncios  e
artigos de jornais  de  época . Uma saborosa propaganda publicada no  estado , em 1925 , por exemplo , oferece as vantagens do  loteamento  Nova  Machester louvando a classe  média . " A classe  média , essa classe  laboriosa  e  heroica , que sofre mas não se queixa , termina agora o seu nobre sacrifício " , diz o texto.

Se a propaganda pinta um  cenário  cor-de-rosa , as charges e estatísticas mostram o  lado  negro  da  crise  habitacional . " A habitação jamais foi um problema que pudesse ser resolvido com uma  porção de  casas bem  construídas " , afirma . " E mesmo que chegássemos a esse ponto , não poderíamos incorrer nos vícios  urbanísticos intencionalmente preservados nos códigos de obras .Afinal ,como dizia o professor  Artigas , ' uma  casa  não  acaba  na  soleira  da  porta ''' , conclui  Segawa .

Fonte  - Jornal  O  ESTADO  DE  SÃO  PAULO  - pág D4   Caderno 2/ Cultura
Domingo , 15 de outubro de 2000 - ARQUITETURA -  MARIA  HIRSZMAN  

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