Dia do Samba - 2 de Dezembro
“ QUE LÍNGUA DESGRAÇADA ! QUE VAIDADE ! mas a gente não podia deixar de gostar
dele desde logo , pelo menos os que são sensíveis ao sabor da qualidade carioca “ . Com estas palavras ,perpassadas de humor e admiração . Manuel Bandeira ( 1886 - 1968 ) nos narra na crônica “ O enterro de Sinhô “ , publicada no Diário Nacional em 1930 , seu primeiro encontro com o " Rei do Samba “ dos anos 1920 .
O poeta e o sambista Sinhô se conheceram no velório do escritor e jornalista boêmio Zeca Patrocínio - filho do “ Tigre da Abolição “ , José do Patrocínio ( 1853 - 1905 ) . Foi imediata a identificação poética de Bandeira com o músico popular .Sua crônica revela um encantamento tipicamente modernista : a desco-berta de um representante genuíno do povo brasileiro , cuja linguagem era tão prezada por Manuel Bandeira, que num de seus poemas ele faz a apologia da “ língua errada do povo , da língua certa do povo, porque ele é que fala gostoso o português do Brasil “ .
Encontros entre artistas cultos e artistas populares são importantes para a compreensão da história social e literária contemporânea .Podemos citar ,além do ocorrido entre Bandeira e Sinhô , o encontro de Mário de Andrade ( 1893 - 1945 ) com o tocador de coco Chico Antônio ( 1904 - 1993 ) , ou o do antropólogo Gilberto Freyre ( 1900 - 1987 ) com o genial Pixinguinha ( 1897 - 1973 ) . Tratava -se de uma apaixonada por poetas , pensadores , prosadores e críticos para desvelar a verdade do país na sua realidade “ pro-funda “ , com o intuíto de estabelecer trocas vivenciais e artísticas com os representantes mais autênticos da cultura do povo , vistos agora sem idealizações românticas ou ufanismos positivistas .
O objeto do desejo dessas aproximações era a incorporação pelos modernistas da criatividade de uma vasta cultura miscigenada e sincrética para conceber uma língua literária , uma reflexão crítica e uma arte verdadeiramente brasileiras . E um dos momentos mais significativos dessa busca ,até hoje muito pouco estu-dado , foi o mergulho de alguns modernistas , entre eles o próprio Bandeira e Heitor Villa - Lobos
( 1887 - 1959 ) , no denso universo de relações pessoais artísticas , de classes e de raças nascido da boêmia carioca dos ano 20 do século XX .
A obra do Sinhô é importantíssimo para o desenvolvimento da música popular brasileira por vários motivos. Surge ,por exemplo ,num momento em que ocorre a passagem da criação amadora para a produção profissiona, ligada ao mercado e à indústria cultural . Por outro lado , circulando por ambientes socialmente diferenciados, sinhô parece personificar a ascensão de um gênero musical - o samba - ainda não reconhecido e até mesmo desprezado e esnobado pela cultura letrada da época .E é esta sua habilidade que encanta e o põe face a face com Manuel Bandeira .
Só possuímos informações dess e encontro a partir do que o poeta nos apresenta em suas Crônicas da Província do Brasil , publicadas em livro no ano de 19937 . São textos repletos de histórias deliciosas , escritas no tempo em que Bandeira viveu na Ladeira do Curvelo , em Santa Teresa , entre 1920 e 1933 , período em que também produziu Ritmo dissoluto ( 1924 ) , Libertinagem ( 1930 ) e grande parte de Estrela da manhã . Testemunho sensível e requintado do desejo direto com a realidade cultural do “país de um “ viajante entre classes sociais , raças , religiões e paisagens do Brasil “ , o livro reúne algumas das crônicas que o ´poeta escreveu para diversos jornais e revistas da época , principalmente A Província , de Recife, então dirigido por Gilberto Freyre , e o Diário Nacional , de São Paulo , a pedido de seu grande amigo Mário de Andrade .
Os nomes de Gilberto e Mário não surgem aqui por acaso : os dois foram os principais interlocutores de Bandeira no seu processo particular de descobrimento poético de um “ Brasil profundo “ . É bom frisar que , para Manuel Bandeira , o mais profundo é o mais cotidiano . Em Crônicas da Província o Brasil encontramos a três crônicas em que Bandeira se refere a Sinhô : “ Na câmara - ardente de José do Patrocínio Filho “ ( publicada em A Província de 12 de outubro de 1929 ) . “ O enterro de Sinhô “ ( no Diário Nacional de 9 de agosto de 1930 ) é “ Sambistas “ ( na Revista Souza Cruz ,em dezembro de 1930 e janeiro de 1931 ) .
Sinhô foi apresentado a bandeira no auge de sua carreira musical , já entronizado como " rei do samba " pelo próprio Zeca do Patrocínio , após criar inúmeros sucessos , por toda a década de 1920 ,que se espa-lhavm pela cidade com a rapidez de fogo em mato seco : " Pé de anjo " , " Jura " , " Gosto que me enrosco " , " professor de violão " , " de que vale a nota sem o carinho da mulher ? " , " A cocaína " . Como o rádio ainda
não se impusera como meio de divulgação por excelência da música popular carioca ,os artistas divulgavam
suas músicas usando mil artifícios . Sinhô , malandro e vaidoso , se autopromove em qualquer situação , inclusive no velório do amigo José do Patrocínio Filho .
O sambista se torna conhecido entre 1919 e 1930 - ano em que morreu , vítima de uma hemoptise fulminante ,
dentro da barca que ligava a Ilha do Governador ao centro da cidade . Ficou marcado na história do samba pela
máxima que cunhou : " Samba é que nem passarinho , é do primeiro que pegar " . Polêmicas como essa estão
mesmo na raiz do gênero , já que " Pelo telefone " - considerado o primeiro samba , registrado em 1917
por Donga ( 1890 - 1974 ) , em parceria com o jornalista Mauro de Almeida ( 1882 - 1956 ) - foi , naverdade , uma criação coletiva feita numa das inúmeras festas que ocorriam na casa da Tia Ciata ( 1854 - 1924 ) .
Depois do sucesso de " Pelo telefone " , a famosa tia baiana , Sinhô e outras personalidades do mundo do samba que participaram da criação quiseram adquirir também sua parcela no que já virara um grande negócio .
Por essa perspectiva , o legado de Sinhô pode ser visto como uma espécie de antologia das vozes dispersas do Rio de então , assim como , guardadas as devidas proporções , a obra de Gregório de Matos foi no barroco brasileiro . Sinhô , usa , sem qualquer teoria ou conhecimento de causa , de modo pragmático , procedimentos típicos das vanguardas modernistas , como ,por exemplo , o jogo intertextual da paródia e da livre apropriação inventiva da obra alheia . E aqui podemos traçar um paralelo de atitudes criativas entre o semi - analfabeto Sinhô , primeiro grande ídolo da nascente cultura comercial de massa brasileira , e Bandeira , um dos poetas mais cultos e respeitados de nosso Modernismo , que dizia não haver nada no mundo de que gostasse mais do que a música .
Vamos nos deter em apenas dois casos exemplares de jogo intermusical , comum na estética modernista , utilizados nas obra sdos dois criadores . Bandeira , ao fazer a letra para um oratório de Francisco Mignone 1897 - 1986 ) , " Alegrias de Nossa Senhora " , recorre aos poemas de uma monja carmelita que lhe passava os versos , ansiosa para saber a opinião do poeta sobre a qualidade de sua poesia .Baseado no material apre-
sentado pela religiosa . Bandeira compos os versos para a obra Mignone ; contudo , o resultado final , segundo depoimento do próprio poeta , pareceu - lhe mais dela do que eu .
Sinhô , por sua vez , compôs a marchinha carnavalesca " Pé de Anjo " a partir da valsa francesa " Cest pas difficile ( Jenny ) " , numa dinâmica de criação singalaríssima . Após ouvir a melodia assobiada por uma freguesa da Casa Beethoven , que osambista frequentava para divulgar as partituras de suas canções , tocou e retocou a valsa várias vezes ao piano . Nesse processo , acabou por trocar o compasso tercenário original da música pelo binário sincopado brasileiro , fazendo ainda alterações sutis no ritmo e melodia , além de criar uma nova letra, ironizando os pés grandes da Cina , irmão de Pixinguinha .
A letra de " Pé de Anjo " dá prosseguimento à primeira grande polêmica criativa da canção popular brasileira - que terá outras , como as refregas musicais vividas por Noel rosa ( 1910 - 1937 ) e Wilson Batist a ( 1913 -
1968 ) ou Herivelto Martins ( 1912 - 1992 ) e Dalva de Oliveira ( 1917 - 1972 ) - , iniciada quando alguns artistas descendentes dos baianos no Rio , entre eles Donga e Pinxiguinha , ficaram ofendidos com os versos de" Quem são eles ? " , samba de 1918 de Sinhô que fala sem papas na língua , que " A Bahia é terra boa / ela lá e eu aqui " . A resposta dos " baianos " foi imediata , com " Fica calmo que aparece " ( Donga ) , " Não és tão falado assim " ( Hilário Jovino Ferreira ) e " Já te digo " ( China e Pixinguinha ) , em que Sinhô é pintado como um sujeito " alto, magro e feio " . o confronto inicial entre os artistas
A polêmica , na verdade , simboliza o confronto inicial entre os artistas ainda presos a raízes folclóricas e os compositores urbanos profissionalizados , que já trbalham comercilamente suas canções . Coisa que Sinhô fez de modo sistemático ,seja participando de concursos na Festa da Penha ,que ocorriam em outubro e que eram
eram uma espécie de vestibular para os sucessos de carnaval , seja dedicando suas canções a persona-lidades famosas - como Oswald de Andrade ( 1890 - 1954 ) , Tarsila de Amaral ( 1886 - 1973 ) e Roberto Marinho ( 1904 - 2003 ) , entre outros - em troca de proteção e patrocínio .
Fonte - Revista da História da Biblioteca Nacional - págs 69 a 73
Data - Outubro de 2007 - RHBN - n ° 25