quarta-feira, 3 de dezembro de 2025

O poeta e o sambista


 




                                      Dia  do Samba  -  2  de  Dezembro


“  QUE  LÍNGUA  DESGRAÇADA  !  QUE  VAIDADE !   mas  a gente não podia  deixar  de  gostar

dele desde logo , pelo menos os que são sensíveis ao sabor da  qualidade carioca “ . Com estas palavras ,perpassadas de humor e admiração . Manuel  Bandeira ( 1886 - 1968 ) nos narra na crônica  “ O  enterro de  Sinhô “ , publicada no Diário Nacional  em 1930 , seu primeiro  encontro com o " Rei  do  Samba “  dos  anos 1920 .


 O  poeta e o sambista  Sinhô se conheceram no velório  do  escritor e  jornalista  boêmio  Zeca  Patrocínio  - filho do  “ Tigre  da  Abolição “ , José  do  Patrocínio ( 1853 - 1905 ) . Foi imediata a identificação  poética  de  Bandeira com o músico  popular .Sua crônica revela um  encantamento tipicamente modernista : a desco-berta de um representante genuíno do  povo brasileiro , cuja linguagem era tão prezada por Manuel  Bandeira, que num de seus poemas ele faz a  apologia  da  “ língua  errada  do  povo , da  língua  certa  do povo, porque ele é que fala  gostoso  o  português  do  Brasil “ .


Encontros  entre artistas  cultos e  artistas  populares são importantes para a compreensão da história social e literária contemporânea .Podemos citar ,além do ocorrido entre Bandeira  e  Sinhô , o encontro de  Mário de Andrade  ( 1893 - 1945 ) com o tocador  de  coco Chico  Antônio  ( 1904 - 1993 ) , ou o do  antropólogo  Gilberto  Freyre ( 1900 - 1987 ) com o genial Pixinguinha  (  1897 - 1973 )  . Tratava -se  de uma apaixonada por  poetas , pensadores , prosadores  e  críticos  para desvelar a  verdade  do  país  na  sua  realidade  “ pro-funda “ , com o  intuíto de estabelecer  trocas  vivenciais  e  artísticas com os  representantes mais autênticos  da  cultura do  povo , vistos  agora sem  idealizações  românticas  ou ufanismos positivistas .


O objeto do desejo dessas aproximações era a incorporação pelos  modernistas da  criatividade  de  uma vasta  cultura  miscigenada  e  sincrética  para  conceber  uma  língua  literária , uma reflexão  crítica  e  uma  arte  verdadeiramente  brasileiras . E um dos momentos mais significativos dessa busca ,até hoje muito pouco estu-dado , foi o  mergulho  de  alguns modernistas , entre  eles  o próprio  Bandeira  e Heitor  Villa  -  Lobos 

( 1887 - 1959 ) , no  denso universo de relações  pessoais artísticas , de  classes e de raças  nascido da boêmia  carioca dos ano  20  do  século  XX .





A obra do  Sinhô é importantíssimo  para  o desenvolvimento da  música popular brasileira por vários motivos. Surge ,por exemplo ,num momento em que ocorre a passagem da criação amadora para a produção profissiona, ligada ao mercado e à  indústria cultural . Por  outro lado , circulando por ambientes socialmente diferenciados, sinhô parece  personificar  a ascensão de um  gênero  musical  - o  samba - ainda não reconhecido e até mesmo  desprezado  e  esnobado pela  cultura  letrada  da  época .E é esta  sua  habilidade  que  encanta  e o põe face a face  com  Manuel  Bandeira .


Só possuímos  informações dess e encontro  a partir do que  o  poeta nos apresenta  em  suas  Crônicas  da  Província  do  Brasil ,  publicadas  em  livro  no ano de  19937 . São  textos  repletos de histórias  deliciosas  , escritas  no  tempo em  que  Bandeira viveu  na Ladeira  do  Curvelo , em Santa Teresa  , entre  1920 e 1933 , período em que também produziu Ritmo  dissoluto ( 1924 ) , Libertinagem  ( 1930 ) e grande parte de  Estrela da manhã . Testemunho  sensível e requintado do desejo direto com a realidade  cultural  do   “país  de um  “ viajante entre classes  sociais  , raças , religiões  e  paisagens  do  Brasil “ , o livro reúne algumas das crônicas  que  o  ´poeta escreveu para  diversos  jornais  e revistas  da  época , principalmente  A  Província  , de Recife, então dirigido  por  Gilberto Freyre  , e o Diário  Nacional , de  São  Paulo , a pedido  de seu grande  amigo   Mário de Andrade .


Os nomes  de  Gilberto  e  Mário não  surgem  aqui por acaso  : os dois foram os principais interlocutores de  Bandeira  no  seu  processo  particular de  descobrimento  poético  de  um  “  Brasil  profundo  “ . É bom frisar  que , para  Manuel  Bandeira  , o  mais  profundo  é  o  mais  cotidiano . Em  Crônicas  da  Província  o  Brasil  encontramos  a  três  crônicas   em que  Bandeira  se  refere  a  Sinhô  : “  Na  câmara - ardente  de  José  do  Patrocínio  Filho “ (  publicada  em  A   Província  de  12  de  outubro  de  1929  ) .  “ O  enterro  de  Sinhô  “  ( no  Diário  Nacional  de  9 de  agosto  de  1930  )  é  “  Sambistas “ ( na  Revista Souza  Cruz ,em dezembro  de  1930  e janeiro  de 1931 ) .


Sinhô foi apresentado a bandeira no auge de sua carreira musical , já entronizado como " rei do samba " pelo próprio Zeca do Patrocínio , após criar inúmeros sucessos , por toda a década de 1920 ,que se espa-lhavm pela cidade com a rapidez de fogo em mato seco : " Pé de anjo " , " Jura " , " Gosto que me enrosco " , " professor de violão " , " de que vale a nota sem o carinho da mulher ? " , " A cocaína " . Como o rádio ainda

não se impusera como meio de divulgação por excelência da música popular carioca ,os artistas divulgavam

suas músicas usando mil artifícios . Sinhô , malandro e vaidoso , se autopromove em qualquer situação , inclusive no velório do amigo José do Patrocínio Filho .


O sambista se torna conhecido entre 1919 e 1930 - ano em que morreu , vítima de uma hemoptise fulminante ,

dentro da barca que ligava a Ilha do Governador ao centro da cidade . Ficou marcado na história do samba pela

máxima que cunhou : " Samba é que nem passarinho , é do primeiro que pegar " . Polêmicas como essa estão

mesmo na raiz do gênero , já que " Pelo telefone " - considerado o primeiro samba , registrado em 1917

por Donga ( 1890 - 1974 ) , em parceria com o jornalista Mauro de Almeida ( 1882 - 1956 ) - foi , naverdade , uma criação coletiva feita numa das inúmeras festas que ocorriam na casa da Tia Ciata ( 1854 - 1924 ) .

Depois do sucesso de " Pelo telefone  " , a famosa tia baiana , Sinhô e outras personalidades do mundo do samba que participaram da criação quiseram adquirir também sua parcela no que já virara um grande negócio .



Por essa perspectiva , o legado de Sinhô pode ser visto como uma espécie de antologia das vozes dispersas do Rio de então , assim como , guardadas as devidas proporções , a obra de Gregório de Matos foi no barroco brasileiro . Sinhô , usa , sem qualquer teoria ou conhecimento de causa , de modo pragmático , procedimentos típicos das vanguardas modernistas , como ,por exemplo , o jogo intertextual da paródia e da livre apropriação inventiva da obra alheia . E aqui podemos traçar um paralelo de atitudes criativas entre o semi - analfabeto Sinhô , primeiro grande ídolo da nascente cultura comercial de massa brasileira , e Bandeira , um dos poetas mais cultos e respeitados de nosso Modernismo , que dizia não haver nada no mundo de que gostasse mais do que a música .


Vamos nos deter em apenas dois casos exemplares de jogo intermusical , comum na estética modernista , utilizados nas obra sdos dois criadores . Bandeira , ao fazer a letra para um oratório de Francisco Mignone 1897 - 1986 ) , " Alegrias de Nossa Senhora " , recorre aos poemas de uma monja carmelita que lhe passava os versos , ansiosa para saber a opinião do poeta sobre a qualidade de sua poesia .Baseado no material apre-

sentado pela religiosa . Bandeira compos os versos para a obra Mignone ; contudo , o resultado final , segundo depoimento do próprio poeta , pareceu - lhe mais dela do que eu .


Sinhô , por sua vez , compôs a marchinha carnavalesca " Pé de Anjo " a partir da valsa francesa " Cest pas difficile ( Jenny ) " , numa dinâmica de criação singalaríssima . Após ouvir a melodia assobiada por uma freguesa da Casa Beethoven , que osambista frequentava para divulgar as partituras de suas canções , tocou e retocou a valsa várias vezes ao piano . Nesse processo , acabou por trocar o compasso tercenário original da música pelo binário sincopado brasileiro , fazendo ainda alterações sutis no ritmo e melodia , além de criar uma nova letra, ironizando os pés grandes da Cina , irmão de Pixinguinha .






A letra de " Pé de Anjo " dá prosseguimento à primeira grande polêmica criativa da canção popular brasileira - que terá outras , como as refregas musicais vividas por Noel rosa ( 1910 - 1937 ) e Wilson Batist a ( 1913 -

1968 ) ou Herivelto Martins ( 1912 - 1992 ) e Dalva de Oliveira ( 1917 - 1972 ) - , iniciada quando alguns artistas descendentes dos baianos no Rio , entre eles Donga e Pinxiguinha , ficaram ofendidos com os versos de" Quem são eles ? " , samba de 1918 de Sinhô que fala sem papas na língua , que " A Bahia é terra boa / ela lá e eu aqui " . A resposta dos " baianos " foi imediata , com " Fica calmo que aparece " ( Donga ) , " Não és tão falado assim " ( Hilário Jovino Ferreira ) e " Já te digo " ( China e Pixinguinha ) , em que Sinhô é pintado como um sujeito " alto, magro e feio " . o confronto inicial entre os artistas


A polêmica , na verdade , simboliza o confronto inicial entre os artistas ainda presos a raízes folclóricas e os compositores urbanos profissionalizados , que já trbalham comercilamente suas canções . Coisa que Sinhô fez de modo sistemático ,seja participando de concursos na Festa da Penha ,que ocorriam em outubro e que eram

eram uma espécie de vestibular para os sucessos de carnaval , seja dedicando suas canções a persona-lidades famosas - como Oswald de Andrade ( 1890 - 1954 ) , Tarsila de Amaral ( 1886 - 1973 ) e Roberto Marinho ( 1904 - 2003 ) , entre outros - em troca de proteção e patrocínio .


Fonte - Revista da História da Biblioteca Nacional - págs 69 a 73

Data - Outubro de 2007 - RHBN - n ° 25



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