terça-feira, 2 de abril de 2019

A “Disparada“ de Vandré



Quando “Disparada“ apareceu na música popular brasileira, você não imagina o barulho que causou. A bossa-nova já havia esgotado o filão mulher-barquinho-areia, tendo como carro-chefe a TV Record, ganhara espaço uma MPB paulista pesadamente jazzificada, que era para a bossa nova o que o rococó foi para o barroco.

A reação ao uso abusivo de acordes dissonantes do samba-jaz  paulista surgiu de várias frentes. Da própria bossa nova apareceu uma dissidência dita nacionalista, similar à reação da música erudita brasileira contra o serialismo em voga, tendo na linha frente Baden Powell  , Carlos Lyra e Sérgio Ricardo. Mas foi apenas o rito de passagem para a jovem e brilhante geração que estava a caminho.

Chico Buarque ressuscitou as linhas de sambas clássicos de Ismael Silva. Sidnei Miller foi buscar nas cantigas de roda a linha com que bordava seus encantos; e Edu Lobo em Villa Lobos e Camargo Guarnieri a linha com que bordava suas cirandas e ponteios. Os baianos foram beber em Caymmi  , Luiz Gonzaga, mas , especialmente  , em Jackson do Pandeiro. E havia Geraldo Vandré, do proporcionalmente mais musical Estado brasileiro  ,a Paraíba .

Talvez a rapaziada de hoje não se dê conta de sua importância e julgue Vandré  apenas um compositor estranho, cantado nas missas da Comunidade Eclesial de Base ou nos encontros nostálgicos do velho “Partidão“.

Na época , foi um murro no queixo.

Vandré não era músico tão completo quanto  Edu Lobo, outro que, como ele, trilhava as fronteiras do folclore. Utilizava o belo salário de fiscal da SUNAB para financiar o Quarteto Novo, que foi seu conjunto exclusivo por algum tempo. Veja só: uma pessoa física bancando um conjunto que tinha alguns dos futuros maiores músicos do planeta  – o percussionista Airto Moreira  , o multi-instrumentista Hermeto Pascoal e os violonistas Heraldo do Monte e Théo de Barros . E deixava todos loucos, com seu temperamento terrível.

Tinha a capacidade rara de, mesmo sendo letrista na maioria de suas parcerias, injetar no parceiro SEU  estilo de música . Com Vandré, cada parceiro tinha seu momento único de Vandré, que nunca mais se repetiria.

Quando estourou sua primeira composição conhecida, uma marcha-rancho - “Olha que a vida é tão linda / e se perde em tristezas assim / segue seu rancho cantando / a sua esperança sem fim “ – parceria com Fernando Lona (músico da noite paulista, que morreu logo depois, de acidente de automóvel), imediatamente nosso grupo serenata incorporou a seu repertório.

Naqueles anos, aliás, houve um conjunto mágico de marchas rancho  que nos acompanharam vida afora  . Era a de Vandré  , “ a Marcha da Quarta-feira de Cinzas  “  , de Lira  e  Vinícius,  e o “ Rancho das Flores  “ , de Ari Barroso e Vinícius  . Só alguns anos depois , o “ Rancho da Goiabada “ , de João Bosco e Aldir Blanc, mereceria figurar em tão augusta companhia .

Mas eu comecei falando de “ Disparada “ e foi ali que o circo pegou fogo. Foi no mais concorrido festival de música popular brasileira da história. Era o primeiro da era plena da televisão, que saíra dos grandes centros e começara a se espalhar por todo o país.

Chico Buarque já era namoradinho do Brasil e comparecia com “a Banda “ , música simples, mas que nasceu clássica. Excursionando pelo Nordeste com o conjunto da Rhodia, Vandré inscreveu “ Disparada “ , em parceria com Théo Barros .

Dizia-se música caipira paulista, fruto de pesquisas folclóricas. Que mané música caipira paulista, que nada! Era um autêntico Vandré e pronto. Tinha elementos de viola, na introdução no ritmo incorporava elementos nordestinos, mas, também, andinos. E havia a interpretação magistral de Jair Rodrigues e do Trio Maraiá. Jair era considerado injustamente intérprete menor, por sua espontaneidade que contrastava com os malabaristas vocais daquele fim de período. Mas quem ouviu “Disparada “ com ele não há de esquecer jamais.

Depois houve a politização da música de Vandré, que acabou por vitimá-lo. De longe, Chico e Vandré foram as duas maiores influências para a juventude que começava a se iniciar nas artes da composição.

O Brasil inteiro compunha  , no embalo dos festivais. Eu mesmo, no festival de São João da Boa Vista de 1967 , inscrevi “ Serpentina “ , música que denunciava o uso do dispositivo intra-uterino para esterilizar mulheres do Nordeste  , veja só. Cada interpretação resultava em duas cordas arrebentadas, de tanto que a gente martelava o violão para arrancar “ arrepios “ da plateia. E fiquei indignadíssimo quando “ Serpentina “  perdeu para “ Penúltima “  , música no estilo Chico  . Registrei meu protesto em público  , para espanto dos jurados, já que a vencedora era composição de minha autoria  também.
  
Nesse clima louco, Vandré incorporou seu papel de condutor, de povos, como um Antônio Conselheiro da era eletrônica  . Teve seu momento épico com “ Pra Não Dizer Que Não Falei Das Flores “, em que colocou milhares de pessoas no Maracanãzinho, cantando contra o regime militar, para, pouco depois, ser sepultado, primeiro pela ditadura, depois pelos novos tempos. Assim como outros grandes, o tronco Vandré resultou em vários galhos relevantes, especialmente na música regionalista acima da Bahia, naqueles Estados que circundam Pernambuco. Veio o Quinteto Violado  , Geraldo Azevedo  , Xangai , Vital Farias – melodista extraordinário  (por onde andará?). Naqueles teatros velhos do Recife, toda semana há apresentações com cantores da região, a maioria filhos diretos de Vandré.

Mas, vendo-o agora, solitário e desconexo, a música que me vem à memória é “ Pequeno Concerto que virou Canção “, de um Vandré lírico, triste como a própria solidão na qual se meteu, e de onde provavelmente jamais sairá .

Fonte    -           Jornal    -  FOLHA  DE  SÃO  APULO 
LUÍS  NASSIF




 POEMA   MAIOR 

Mais  além  que de  passagem 
Nós  pés  de  uma  cordilheira 
]Deixei  meu riso  guardado 
Como  se  guarda  a parreira 

E  alguém  que  eu  vi  sem  roupagem
De  qualquer  jeito  e  maneira 
Guardou  meu  sonhar  contigo 
Sem  modos  de  brincadeira 

Seu  canto ,  alegre  , sorriso 
Pranto  meu  ,  mais  que  precisos 
Abertos  aos indecisos 
Sobre  o  pão  numa  lareira 

E  a  rosa  que  cultivava 
Nas  pedras  da  correnteza 
A  mim  quando  se  me  dava 
Nas  pedras  da  correnteza  , 
Nunca  se  fez  de  rogada ;
Rolava  mais que  uma  esteira 
Seguro  do  seu  feitio  
No  alto  da  bagaceira .

Um  dia  morte  matreira 
Promovida  na  carreira 
De  quem  não  tinha  no  verbo 
O  amor da  terra  estrangeira 
Tentou  passar-se  por  cima 
Dos  olhos  de  uma  trincheira 
Pensando  que de  onde  vinha 
Se  sustentava  madeira  
Pra  quem  não  tinha  querido
Nem  segunda  e  nem  primeira.

Mal  convencida  do  amor 
Da  rosa  numa  roseira 
Ferida  por  sem  valor 
De  sem  tocá-la  querê-la 
A  morte , tal, prometida 
Chegou-se  de  mala  esgueira .

Passou  por  cima  da  relva 
Debaixo  de  uma  amoreira  
E  anunciou-se  o  mais  forte 
Sobre  todos  numa  feira  .

Y yo  que  me  puse  pronto
Entre  tantos  de  la  feria
Me  encontrei  que  muerto  estaba
En  eso  de  essa  carreira  
                                                            
Me  dejé  com  un  sentido 
Desesperado  em  la  feria  , 
Se  me  perdió  la  sonrisa 
Se  me  perdió  la  tristeza .

Se  puso  piedra  mi  pecho ,
Se  puso  agua  em  mais  venas  , 
Se  puso  guardias  de  espaldas  
Donde  no  habitan  tetas  .

Se  puso  mi  corazón 
En  un  cerro  de  sinson ,
De  sillas  puras  cadenas, 
En  ellas  no  se  seniaban
Ni  gallos  de  la  pradera , 
Ni  retones  de  los  rios  , 
Ni  la  sangre  enredadera .

Meus  olhos  não  viram  nada 
De  nada  que  então  perdera .
Minhas  palavras  caladas 
Não  naquela  fronteira  .

Minha  morte  foi  marcada  , 
Minha  vida  foi  parada ,
Morri  naquela   fronteira  .

Até  que  foram  buscar-me 
Do  que  um  dia  havia  escrito 
Nos  olhos  de  uma  bandeira.

POR  GERALDO  VANDRÉ 
                                                            

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Deixe seu comentário sobre a postagem.