terça-feira, 2 de abril de 2019

Livro e filme revivem o mito Anita Garibaldi



Após 150  anos  de  sua  morte, será  emitida  a  certidão  que  comprova  a origem  brasileira.

Mais do que reaquecer a memória nacional, a proximidade dos 150 anos da morte de Anita Garibaldi atesta a capacidade camaleônica dos mitos. A Heroína de Dois Mundos, como entrou para a história a companheira de amor e revolução de Garibaldi, deve ganhar mais revisões de sua vida durante o ano. 

Uma vida emoldurada, até agora, por versões pautadas pela conveniência de tendências políticas, regionalistas e familiares que, em comum, guardam apenas a aura da bravura da pequena lagunense, homenageada pela escola de samba de Joãozinho Trinta como uma feiticeira de uma ilha catarinense

A visão do carnavalesco para a origem de Anita, que nasceu Ana Maria Ribeiro da Silva, é tida pelos especialistas garibaldinos como um descuido histórico grave. Mas não há como se condenar a primeira homenagem do ano para ela, uma vez que a filha de tropeiro terá sua certidão de nascimento emitida pela primeira vez (até onde se sabe) no dia 11, na Fundação Anita Garibaldi, em Florianópolis, graças a uma ação movida pelo presidente da entidade, o advogado Adílcio Cadorin. 

Até a data, não há documento que comprove o local do nascimento, que a partir de maio passa a ser Laguna, oficialmente. Fora de sua terra natal, é muito comum se ouvir a história de Anita italiana (uma das versões mais recorrentes), Anita gaúcha e até mesmo Anita uruguaia. E, assim como seu nascimento, sua morte tem tantas versões quanto o imaginário e o desejo de seus fãs e desafetos políticos foram capazes de conceber. 

Ideal – O idólatras mais apaixonados narram uma morte romântica em combate, afinal Anita de fato empurrou sabres e pistolas em nome de um ideal libertário e de um amor marginal. Uma narração normalmente voltada para os turistas da região. Mas há ainda sulistas descendentes de famílias anti republicanas que descrevem uma morte decadente da última mulher de Garibaldi. A versão herdada dos inimigos políticos conta que Anita teria sido abandonada com hanseníase. Segundo consta nas memórias de Garibaldi sua companheira morreu em Mandreoli, na Itália, de uma febre campesina que contraiu na gravidez de seu quinto filho, que morreu com a mãe em 4 de agosto de 1849

Para a redação do documento que oficializa  a origem interiorana de Aninha do Bentão (como era chamada antes de abandonar a cidade natal para seguir Garibaldi), Wolfang Ludwig Rau, autor de seis livros sobre o tema (os menos lendários), cruzou informações de cerca de cem documentos recolhidos em Montevidéu , em Roma , no Rio Grande do Sul e em Nice, para citar alguns pontos da andança de quase 40 anos do arquiteto naturalizado brasileiro atrás de evidências sobre Ana.

“Onde Anita esteve em vida, o velho Rau também esteve“ , vangloria-se o descendente de suíços, mundialmente reconhecido como detentor do maior acervo da memória de Garibaldis. O colecionador conta que o argumento definitivo para se formalizar a data e o local do nascimento de Anita Garibaldi foi uma cópia da certidão de casamento dela com o revolucionário unificador, conseguida pelo Arcebispado de Montevidéu. Na cópia do documento, reproduzido na sua última e mais completa biografia da heroína (Anita Garibaldi – Perfil de uma Heroína Brasileira), consta a cidade de origem de Anita, para a decepção de muitos guias de turismo de lugares por onde ela passou. 

Decepção que, não deve ser pouca, pois o desejo dos povos pela “posse” do mito chegou a medidas extremas como uma remoção sistemática de seus restos mortais pela Itália. De acordo com os registros de seu principal biógrafo, o corpo de Anita Garibaldi foi reenterrado pelo menos seis vezes. O itinerário começou em Gênova e havia sido dado como encerrado em Roma, tendo passado por Nice, de onde foi removido por ordem de Mussolini. Mas, segundo o colecionador e a historiadora Kátia Junks, a próxima lápide da revolucionária poderá ser brasileira.

Além de autor de obras sobre a heroína ,que poderá ser vivida por Claúdia Ohana em filme de Ruy Guerra, Rau se consagrou como a maior fonte de consultas para pesquisadores , biógrafos e outros interessados na vida de Anita e Garibaldi. Aos 83 anos, o arquiteto guarda mais de mil pastas com documentos que registram a trajetória do casal, todos copiados diretamente dos originais. Só a primeira pasta tem cerca de 800 páginas autenticadas por cartórios de vários lugares do mundo. Ele também guarda e conserva em sua casa cerca de 1300 livros sobre a dupla, 200 medalhas garibaldinas, que recolheu em antiquários brasileiros, uruguaios e italianos, 20 pistolas e 10 espadas empunhadas pelas tropas republicanas e tudo quanto é tipo de obra de arte comprável sobre as batalhas protagonizadas pelos dois. E mantém tudo isso sem patrocínio ou apoio institucional. 

“Vendi tudo o que tinha, até mesmo um loteamento inteiro de terrenos para poder viajar e adquirir objetos", conta ele, que herdou do pai a idolatria pelo casal Garibaldi. Sem nenhum apoio para a preservação e o aumento do acervo, Rau recusa-se a vender as peças e faz questão de ajudar os interessados na história de Anita. Ele é uma das fontes mais consultada para os projetos sobre Anita em andamento este ano, como é o caso da biografia Anita Garibaldi - Heroína de Dois Mundos, que está sendo escrita pelo jornalista Paulo Markun, autor do texto abaixo. Markun também está produzindo um documentário sobre a heroína, que será transmitido pela TV Cultura e no qual também dará voz ao maior conhecedor do mito. "Além de guardião de um acervo impressionante , Rau  é um grande personagem ", observa o autor , que lançará as duas obras em agosto. 

Versões equivocadas - Rau conta que forneceu informações para livros sobre Anita que depois comprovou serem equivocadas . Um deles leva a assinatura de um nome , à primeira vista , de alta confiabilidade : Anita Garibaldi , a bisneta italiana da heroína .

A historiadora romana publicou em 1987  La Donna  del  Generale ( A  mulher  do  General) um livro que , segundo a autora , contém textos redigidos pela bisavó e recuperados por ela. Mas hoje as evidências e os documentos apontam para alguns aspectos na vida de Anita que permaneceram por muito tempo na bruma e que desmoralizam a proposta da herdeira . Hoje se sabe , por exemplo , que ela era semi-analfabeta.

"Até menos que isso , infelizmente " , observa Rau . Com as honrarias do governo italiano por sua dedicação à história , ele teve acesso exclusivo aos escritos creditados a Ana Garibaldi que estão sob a guarda do Instituto do Ressurgimento de Roma, tudo devidamente copiado e arquivado pelo colecionador. "Não há um texto com caligrafia igual a outra nas cartas que teriam sido escritas por Anita o que prova que , na verdade , elas foram ditadas " .  Ele comenta que o único exemplo da grafia da Caboclinha é uma assinatura em uma das cartas que teria ditado : "Ana Garibaudi " , com o sobrenome escrito com o "u" no lugar do "l" e bastante rasurado . "Ela  não  sabia  escrever  nem  o  próprio  nome " .

As versões da família derrapam em probleminhas do lar. Giuseppe e Ana esconderam dos quatro filhos o fato de ela ter sido antes de o herói italiano . Documentos , devidamente guardados no museu particular de Rau , provam que Anita , pobre e órfã de pai , um camponês republicano, se casou a pedido a pedido da mãe aos 14 anos com um sapateiro vizinho. 

Na década de 40, articulistas de ornais tentavam resguardar a honra da heroína, apoiando a posição da família em negar o fato de a mulher de Garibaldi ter sido casada duas vezes na igreja , com o primeiro marido ainda vivo. Mas de fato o fez. Como revolucionária que foi , aos 18 anos abandonou a família e nunca mais viu o marido, ausente, velho e imperialista. 


Brasileiros  sabem  pouco  sobre  a   vida  da  heroína  dos  dois  mundos 

O pesquisador   Paulo  Markum  prevê  uma  onda  de  filmes,  peças  e  mini-séries 

Em que porto Anita Garibaldi desembarcou no Brasil ? A pergunta, de um brasileiro com diploma universitário e bom nível cultural , é uma amostra do nosso desconhecimento em relação a episódios , datas e nomes da história do paísAnita Garibaldi nasceu e viveu em Laguna até 1839 , quando partiu com Giuseppe Garibaldi . Navegou e combateu com ele ao longo da nossa costa, percorreu o interior de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul , sempre lutando , até mudar para o Uruguai. Dali, foi para a Itália, onde morreu, perseguida pelos austríacos, aos 28 anos , durante a fuga do exército republicano . Ou seja , jamais desembarcou no Brasil.

É claro que muitos brasileiros conhecem alguma coisa sobre Anita e sua trajetória e que existe até quem tenha dedicado toda sua vida a estudar o assunto. Mas, na média , sabemos apenas que ela é chamada de heroína dos dois mundos , foi casada com Garibaldi e morreu há muito tempo . 

Eu mesmo conhecia pouco mais sobre ela , quando mudei para Florianópolis  na metade do ano passado . Quando soube que a atriz Cláudia Ohana queria fazer um filme e que o carnavalesco Joãozinho Trinta preparava um enredo sobre Anita , fui ver o que existia sobre essa história na livraria mais próxima . Na terra de Anita , havia apenas um livro infantil sobre a heroína catarinense .

Em São Paulo , numa dessas megalojas, aparentemente completas, encontrei dois ou três títulos, dos quais só um estava disponível . Infelizmente , um trabalho feito para enganar os incautos: apresenta cartas escritas por Anita desde pequenininha , até a hora da morte. 
Detalhe importante : ela sabia ler, mas na hora de escrever , não ia além de uma assinatura vacilante

Na Biblioteca Mário de Andrade , em São Paulo , e na Nacional do Rio , funcionários dedicados e solícitos ajudaram a localizar uma dúzia de biografias de Anita Garibaldi . A mais abrangente , dos anos 50. Na Internet , encontrei a página da coleção Anthony P. Campanella , com 2.500 títulos sobre Garibaldi - e por tabela , sobre a mulher dele também . Como costuma ocorrer em casos semelhantes , a coleção , de um ítalo-americano, muito bem cuidada pelos bibliotecários da Universidade da Carolina do Sul , jamais havia sido pesquisada. Os dez dias em que trabalhei nela valeram por meses de batalha fora dali. Só lá achei o livro que um amigo havia me emprestado e que carregava para baixo e para cima . Escrito por Wolfang Ludwig Rau, um arquiteto catarinense de 83 anos, que dedicou sua vida a estudar Anita Garibaldi, é um resumo do que ele possui em sua preciosa coleção de livros e documentos , a que teve a gentileza de me franquear o acesso

Nesse momento , uma equipe de seis pesquisadores , coordenados pelo historiador Ricardo Maranhão , da UNICAMP , já estava coletando material em São Paulo , Santa Catarina , no Uruguai e na Itália para produzir uma biografia. Nosso projeto é reunir os dados mais confiáveis sobre sua história e apresentá-los de modo acessível e atraente , junto com uma visão geral da regência e suas revoltas do Uruguai da Grande Guerra e da Itália durante a primeira fase da luta pela unificação. Sempre tendo Anita Garibaldi como eixo da história . 

Hoje, na reta final para a entrega do texto , creio que é quase impossível desvendar quem foi , exatamente , essa mulher corajosa , apaixonada, surpreendente. Estou convencido também de que a onda Anita vem aí : filmes, peças de teatros, miniséries, biografias (como a que está sendo feita por Ivone Capuano) . E ainda , se possível , um museu que preserve tudo o que Ludwig Rau reuniu em 30 anos

Espero  que  ,  como  no  mar  , depois  dessa  onda  venham  outras  . Mesmo  dando  o  desconto  da  natural  paixão  pelo  personagem, acho  que só  temos  a  ganhar conhecendo melhor  o  nosso passado.

Fonte  -  Jornal   0  ESTADO  DE  SÃO  PAULO   -  pág  D11

Domingo, 25 de abril de 1999     - PERSONALIDADE

ANA  WEISS   -  CADERNO  2  / CULTURA 

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