quarta-feira, 23 de fevereiro de 2022

As frentes da sustentabilidade para a Terra



Na frente da geosfera precisamos garantir a continuidade dos elementos geológicos que garantem sua configuração e paisagens . A intervenção humana alterou a química do planeta e mudou até as estruturas geológicas que se formaram ao longo dos bilhões de anos. A salinização dos oceanos foi afetada, dizimando os corais e o plâncton que, junto com as florestas, é fundamental para oxigenação de todo planeta .

Só criamos sustentabilidade nesta frente geofísica se assumirmos seriamente o princípio do cuidado e da precaução e desenvolvermos realmente um sentimento de mútua pertença e de responsabilidade universal . Dito na linguagem da moderna cosmologia : estas atitudes representam a curvatura do espaço no nível humano. A curvatura do cuidado faz com que o universo e a Terra se inclinem para dentro de si mesmos e confiram coesão e sustentabilidade a si mesmos e a todos os seres que se encontram sempre interconectados . Nossas atividades industrialistas estão desestruturando este processo.

Na frente da hidrosfera precisamos com urgência frear a crescente escassez de água pelo mau uso dela .Somente 3% de toda a água é doce ; deste pouco somente 0,7% é acessível aos seres humanos. O restante se esconde em aquíferos profundos , nas calotas polares e nos altos nevados das montanhas . Ainda assim 20% daqueles 0,7 % vai para as indústrias, 10% para a agricultura e o restante para o consumo humano e para a sedentação dos animais . Haveria água suficiente para todos, mas ela é desigualmente distribuída : 60%se encontra em nove países , enquanto 80 outros enfrentam escassez .Pouco menos de um bilhão de pessoas consome 86% da água existente, enquanto é insuficiente para 1,4 bilhões ( em 2020 serão três bilhões ) e para dois bilhões não é tratada ,o que gera 85% das doenças contratáveis ,segundo dados da Organização Mundial da Saúde . Presume-se que em 2032cerca de cinco bilhões de pessoas serão afetadas pela crise de água . Além do problema de escassez de água há a sua má gestão.

O Brasil é a potência mundial das águas , com 13% de toda água doce do planeta perfazendo 5,4 trilhões de metros cúbicos . Apesar da abundância , 46% dela é desperdiçada , o que daria para abastecer toda a França , a Bélgica , a Suíça eu Norte da Itália.

Por ser um bem cada vez mais raro,ela é objeto da cobiça daqueles que querem fazer dinheiro com sua comercialização . Por isso nota-se uma corrida mundial para a privatização da água ,e então surge o dilema ético-político: a água é fonte de vida ou fonte de lucro? É um bem natural, vital e insubstituível ou um bem econômico e uma mercadoria ? Evidentemente ela é um bem natural insubstituível sem o qual a vida não resiste.

A sustentabilidade da água depende fundamentalmente das florestas . Elas são responsáveis pela umidade do ar e pela manutenção dos rios e nascentes .

Conferir sustentabilidade da água é seu uso responsável , reuso e o cuidado na manutenção de sua pureza contra a contaminação de agrotóxicos . Por todos os meios deve-se impedir que a água seja levada aos mercados como commodity, pois se água é vida , então é vetado fazer de uma vida uma mercadoria . Ela deve ser mantida , criar condições para se reciclar,ter repouso e tempo para refazer seus nutrientes .O tema da água necessária a todos os seres vivos reforça a ideia de uma governança global . Por esta razão,formaram-se o Grupo de Lisboa e de Florença, composto por cientistas, ecólogos e políticos que postulam urgentemente um pacto social mundial ao redor deste bem tão vital, pois dele todos dependem e podem se reunir em torno dele .

Na frente da atmosfera não são menores os desafios . Já os abordamos anteriormente quando tra - tamos do aquecimento global, fruto do excesso de dióxido de carbono na atmosfera ( 27 bilhões de toneladas/ano) , acrescido pelo metano que é 23 vezes mais agressivo que o anterior e outros gases de efeito estufa . Essa fina camada que cerca a Terra nos defende dos raios solares , nocivos à vida , e constitui o entorno vital de todos os seres vivos.

A poluição, particularmente nas cidades, está afetando a saúde, de toda a Terra, dos humanos , das florestas, das águas e da biodiversidade.

Cuidar da sustentabilidade da atmosfera implica evitar todo tipo de queimada , lentamente substituir a energia fóssil ( petróleo e gás ) por energia limpa cólica , solar, geofísica ,das marés e da biomassa ,controlar a emissão de gases tóxicos que a envenenam e reclicar os dejetos industriais ou anular seu caráter tóxico . As gerações futuras têm direito de herdar um ar respirável e uma atmosfera que garanta as paisagens e a biodiversidade.

Na frente da biosfera residem as maiores ameaças que afetam o Sistema Vida e a continuidade da espécie humana . Sabemos com que capricho o universo organizou todas as medidas que permitissem a emergência da vida . Se a Terra ficasse mais perto do Sol , tornar-se-ia quente demais ; um pouco mais longe , esfriaria demasiadamente e a vida impossível .Se ficasse mais próxima à lua ,as marés cobririam os continentes ; se mais afastada , as águas oceânicas ficaram estagnadas e a vida não teria interrompido ; da mesma forma,se o raio terrestre fosse um pouco maior, a Terra reteria mais quantidade de gases,como Júpiter ; um pouco menor,a Terra ficaria mais sólida como Marte. Em todos esses casos , ou não teria aparecido a vida ou ela seria totalmente diferente do que atualmente é ( veja BERRY , T . O sonho da Terra , p.224 ).

Hoje todas as formas de vida estão ameaçadas. Daí ser urgente garantirmos a sustentabilidade dos ciclos da vida . Em primeiríssimo lugar vêm aqueles seres invisíveis ,pois são os mais decisivos para a perpetuidade da vida: os micro-organismos , escondidos nos solo, nos mangues e nas vegetações : as bactérias , os vírus, os protozoários e os fungos. Os vermes nematoides ( de formato cilíndrico ) constituem ,segundo o biólogo Edward Wilson , 4/5 de todos os seres vivos da Terra . Os insetos, especialmente as abelhas ( que estão misteriosamente desaparecendo ) e os morcegos , são fundamentais para a polinização das plantas . Afirma o mesmo biólogo que " se os insetos desaparecessem , o meio ambiente terrestre logo iria entrar em colapso e mergulhar no caos " ( A criação - Como salvar a vida na Terra, 2008, p.42).

Percebemos quão importante é a comunidade de vida e a biosfera que propicia as condições de manutenção e reprodução da vida. Esta biosfera somente poderá continuar se for mantida a biodiversidade e for reduzida drasticamente a dizimação de espécies. Com sua diminuição, diminuiu também a biosfera ,que é feita em grande parte pelos próprios seres vivos em benefício próprio .

Na frente da antroposfera ou noosfera se encontram hoje os riscos mais ameaçadores . Até o surgimento dos seres humanos , a Terra era conduzida pelas forças diretivas do universo e se verificava uma lógica e um propósito ascendente da energia às partículas, das partículas ao átomo , do átomo à célula , da célula ao organismo , do organismo à vida , da vida à consciência e da consciência à noosfera ( consciência coletiva da espécie humana globalizada). Com a entrada do ser humano, portador de inteligência e de liberdade ,ocorreu uma copilotagem neste processo . A Terra associou a si os humanos que são a sua porção mais completa e consciente . Logicamente a Terra continuará, mas sem os humanos .Como reinventar o ser humano para que ele seja amigo de si mesmo e amante da Mãe Terra ? Este amor à vida , chamado por E. Wilson de biofilia , deveria ser incutido em todas as pessoas. , a começar das crianças em casa e nas escolas . Se não amarmos e respeitar a Mãe Terra . Essa é grande revolução ética que urge implementar.

A sustentabilidade implica resgatar aquela visão e aqueles valores tão bem representados pelo discurso do cacique Seattle , da etnia dos Duwamish , proferido diante de Isaac Stevens , governador do território de Washington em 1856 :

De uma coisa sabemos : a terra não pertence ao homem. É o homem que pertence à terra. Todas as coisas estão interligadas entre si . O que fere a terra , fere também os filhos e filhos da Mãe Terra .

Não foi o homem que teceu a teia da vida ;ele é meramente um fio da mesma . Tudo que fizer à teia, a si mesmo fará [ …] . Compreenderíamos as intenções do homem branco se conhecêssemos os seus sonhos, se soubéssemos quais as esperanças que transmite a seus filhos e filhas nas longas noites de inverno e quais as visões de futuro que oferece às suas mentes para que se possam for - mular desejos para o dia de amanhã ( todo o texto em BOFF , L . Ecologia : grito da Terra , 1995, p. 336-341 ).

Até o presente momento, o sonho do homem branco é dominar a Terra e submeter todos os demais seres . Esse sonho se transformou num pesadelo . Como nunca antes, o apocalipse pode ser nossa humanidade e de nossa civilização para que seja sustentável no sentido de restabelecer o pacto natural com a Terra , e considerar todos os demais seres , verdadeiramente como irmãos e irmãs , e assim devem ser tratados . Temos que reinventar a existência na Terra e projetar utopias generosas que realizam o casamento entre o céu e a terra ( veja nosso livro de mitos ecológicos de origem indígena : O casamento entre o céu e a terra , 2003 ). Se não houver um regresso à Mãe Terra como o filho pródigo da parábola de Jesus , e se não vivermos uma relação de reciprocidade , devolvendo em respeito e cuidado o que ela, diariamente , nos presenteia , dificilmente sobreviveremos . Ela pode não nos querer mais junto dela . A sustentabilidade aqui é essencial . Ou ela se imporá ou conheceremos uma tragédia para a espécie humana.

Mas a Terra nos envia sempre sinais positivos. Apesar do aquecimento global , da contaminação atmosférica , da agressão contra a biodiversidade , o sol continua nascendo e nos iluminando , o sabiá cantando de manhã, as flores sorrindo com suas cores tão variadas , os colibris esvoaçando por sobre os botões dos lírios, as crianças continuam a nascer e a nos confirmar de que Deus ainda confia na humanidade e que ela terá sempre futuro.

Fonte – Livro Sustentabilidade – O que é – O que não é

Editora Vozes – Petrópolis RJ , 2012 – LEONARDO BOFF



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