terça-feira, 17 de dezembro de 2019

CINEMA, O FASCÍNIO DA ILUSÃO


No final de 1885, no subsolo de um café, em Paris 35 pessoas, deslumbradas, apreciam uma série de imagens em movimento de extremo realismo. Os programadores daquela sessão,  os irmãos  Lumiére, jamais poderiam antever o afluxo de multidões ao café e a transformação da invenção em arte, Mélliès , em que se vê , em estado latente , o feérico e o fantástico, a visão mágica do universo e os processos técnicos do  Cinema , com sua ficção surrealista, revelará o fascínio da sétima arte. Arte que , segundo o escritor  italiano  Ricciotto  Canudo, consistia em sugerir emoções e não relatar fatos. (No  escurinho  do  cinema, o espectador  sonha, devaneia).

Aqueles primeiros cinéfilos, no entanto, lidavam como o real, já que via documentários. O que explicaria esse  encantamento, o interesse, inusitado, pelo cotidiano daquele espectadores ? O que atraía multidões não era a saída dos operários  fábrica, a chegada do tem à gare, mas a imagem do real ; por mais prosaico que fosse.  O  Cinema consegue revelar “ a  beleza  secreta , a  beleza  ideal  dos  movimentos  e  ritos  do  cotidiano”.

Se a  imagem  fotográfica é concreta, palpável, a cinematográfica não é. No entanto, a presença  de stars/figuras que, ilusoriamente , se movem , é o que nos atrai .

“ Cinema  é  sonho  “ ,diria  Michel  Dard. “O filme (…) ascende ( …) a um céu de sonho, infinito das estrelas, povoado por adoráveis e demoníacas presenças, que assim se escapa daquela terra-a-terra do qual, segundo todas as aparências, deveria ser  o servo e o espelho“. A técnica  e o sonho – no caso do cinema – andam, de nascença, a par. Em nenhum momento de sua gênese  e do seu desenvolvimento pode-se confinar   o  cinematográfico ao campo exclusivo do sonho  ou  da  ciência“.

O cinema , quando surge , é elogiado  "em função de sua  filiação técnica e industrial, bem como pela sua sintonia com as novas condições da  experiência  sensorial, testemunhada pelo  dinamismo  de  sua  imagem. É uma  arte  moderna, sem vínculos  com o passado: 

Alguns estetas, de  atrasada  percepção, desdenham do cinematográfico. Esses estetas são, quase sempre, velhos  críticos  anquilosados  cuja vida se passou a notar defeitos nos que sabem agir  e  viver. Nenhum desses homens, graves  cidadãos, compreende a superioridade do aliviante progresso da arte. O cinematógrafo é bem moderno e bem de agora. 

Segundo Ismael Xavier,

A nova arte das imagens, fruto de uma nova técnica, (...) assumiria uma posição de extrema importância, pois em nenhum lugar estaria melhor concretizado o ideal de um presente sem memória, que olha exclusivamente para o futuro.

Se é a mais importante, não é essa a única justificativa / preocupação para se fecharem  cinemas. A exibição de  fitas  imorais  suscita outra denúncia, formulada pelo diretor  de Estatística  e  Arquivo  ao  de  Obras  e  Viação:

Levo ao vosso conhecimento que o Sr Prefeito recomendou que nenhuma licença de cinematógrafo público seja concedida ou renovada sem que o interessado requeira e assine um termo, nesta diretoria, no qual se comprometa a não exibir fitas  imorais, sob pena de lhe ser cassada a respectiva licença pela Agência da Prefeitura, sem direito à restituição do imposto e do depósito (...).

Um cinema não é aberto - o  Rio  Negro - que ficaria na rua Visconde do Rio Branco, 40-42 , em 1910. Os empresários chegam a encomendar o mobiliário, ornamentos  e tapeçaria e equipamentos:  à  Fundição  Americana, grades  de  balaústres de metalcancela para fechar a entrada que daria acesso ao recinto destinado ao canto, uma grade de ferro batido com anoetes, para fechar o recinto do aparelho da orquestra, um guichê de metal polido e pés de ferro para os fauteulis de 1ª classe. À casa Auleruma jardineira grande com espelho  bisauté , sofás  estofados, assentos de palha, aparelhos para imitação de ruídos, canuds para os cantores, lavatório, chaise-longueespelho grande e cadeiras estofadas para a toilette das senhoras.  Os tapetes são encomendados a Vidal, Baptista & Cia .

Mas enquanto a Avenida resite, chegando a programar o  Kinemacolor, o Rio  Negro, que seria uma das mais requintadas  salas  de  cinema  da  capital , fica no papel .

FOOTING  MÚSICA  E  CINEMA  NA  AVENIDA  CENTRAL

Em pleno boom das cantantes, numa fase áurea do cinema brasileiro, a avenida Central 
(Rio  Branco), com seus cinemas, é o palco  do  footing  da  sociedade  burguesa  fluminense . Um cronista observa o fenômeno, em 1912: 

Dá-se na  avenida  Rio  Branco  uma anomalia interessante: a preferência por uma das suas calçadas. Enquanto na do lado em que estão os cinemas,  o trânsito é diminuto e fácil, na do lado oposto, mal se pode andar. Poder-se-ia alegar o fato de ser uma sombra e outra de sol. Mas à noite e em dias de festas? 

À noite, dos cinemas só tem gente à porta desses estabelecimentos, ao passo que na outra o movimento é sempre constante. Ainda mais, a população  modesta, a gente descalça e mal vestida, procura sempre o lado dos cinemas; a parte  elegante e  chic, só vai pelo outro lado e quando se dirige ao oposto é para ir... aos cinemas.

Na esquina com a rua Sete  de  Setembro fica o  cinema  Odeon, aberto em agosto de 1909. 

À esquina da rua Sete de setembro ficava o Cinema Odeon onde à noite, moças estrangeiras vestidas de branco tocavam violino. No Pavilhão Internacional  , de Pascoal  Segreto , defronte da Galeria Cruzeiro, às sessões de Animatógrafo, às primeiras horas da noite, sucediam as exibições de filmes obscenos, iguais aos que mostravam em bordeis em Paris, de um realismo torpe. A sala enchia-se de deputados, senadores, comerciantes, dos homens mais sérios e de mulheres da vida...

O  cinema  é  o  delírio  atual 

Cinematógrafos... É o delírio atual. Toda a cidade quer ver os cinematógrafos. O carioca é bem o  homem das  manias, o bicho insaciável e logo saciado das  terras novas. Toma um prazer ou um divertimento e exagera-o, esgota-o, aborrece-o e 
abandona-o. Um empresário hábil que conhecesse as variações do público ganharia aqui em poucos anos uma fortuna de Creso. O  carioca é variável  como o tempo. A questão era descobrir um barômetro, porque, além  do  maxixe  e do vissi  d'art, não há nada neste país que tenha resistido a cinco de anos de vida.

Cinematógrafos ...  Agora  os  cinematógrafos. Em todas as praças há cinematógrafos - anúncios, ajuntando milhares e milhares de pessoas. Na avenida  Central, com  entrada paga há dois, três, e a concorrência é tão grande que a polícia dirige a entrada e fica a gente esperando um tempo infinito na calçada.

É o Rio modernizado, civilizado, como se diz, então. 

As salas de espera são outros cinemas: ou pela requintada decoração, que pode ser assinada por Raul  Pederneiras  ou por Borsoi, pela tração de um conjunto musical de damas vienenses ou por um de chorões. Ou pelos tipos exóticos que nela desfilam sua fatuidade.

O  cinema  é  arte  moderna, como  sublinha  o  cronista:

Se  o  Pavilhão  Internacional, outra sala da  Avenida  , exibe filmes eróticos, outros mostram   fitas  mais  atraentes, como as versões de operetas, de vaudevilles. Na documentação da vida urbana, como  o  corso e as  touradas, toma-se  ficção

Os  cartões-postais : 

Ainda a respeito de  corsos  e  filmagens, um articulista advertia: "Já viram no cinematógrafo  Pathé uma fita denominada  Os  cartões  postais"? E o jornalista relembra o enredo: um cavalheiro casado encontra uma jovem desconhecida e  os dois passam para um fotógrafo de praia. Dias depois o mesmo cavalheiro sai com a esposa e esta entra em uma papelaria para adquirir cartões- postais e vê  no  dito cartão o marido com a outra...


Fonte  -  Livro -   NA  SALA  DE  ESPERA   DO  CINEMA  ODEON  - págs 
15,16,17,18,19,20 e 21  - COLEÇÃO  MEMÓRIA  URBANA - 1991
ARQUIVO  GERAL  DA  CIDADE  DO  RIO  DE  JANEIRO  - Projeto  e texto
Fernando  Fereira  Campos

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